Capítulo 0989 - Pressentimento
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Alguns dias antes…
O sol ainda não havia cruzado o ponto mais alto do céu quando Zao Tian, sentado na sacada lateral do palácio, observava os céus turvos acima da Dinastia Yang com o cenho franzido. Mesmo após vasculhar pessoalmente as memórias de Yang Yin e Yang Fen, um processo exaustivo e meticuloso, ele não conseguia se livrar da inquietação que martelava silenciosamente em seu peito.
Ele tinha visto tudo. Viu os dois sendo capturados, viu a dor, viu as sessões intermináveis de tortura e privação mental. Viu até a fuga, com rastros profundos de culpa e o desejo genuíno de retornar. As memórias batiam. Eram coesas, convincentes... reais. Mas havia um trecho, um ponto específico em que tudo parecia desfocado demais. Uma sequência nebulosa, uma linha frágil entre a clareza e o esquecimento. Uma lacuna que parecia natural, como qualquer outra memória reprimida, mas que incomodava.
O cérebro naturalmente apaga memórias inúteis dele, isso é biologicamente comum. Contudo, Zao Tian não era mais o mesmo homem que se deixava levar apenas pelo que era visível. Ele sabia que, naquela luta, o que estava oculto era muito mais perigoso do que o resto.
Pensativo, ele ergueu o amuleto de transmissão sonora, apertou-o levemente e, com a voz baixa, disse: “Daren. Preciso falar com você.”
O tempo de resposta foi curto. A voz de Daren ecoou quase imediatamente do outro lado, calma, mas carregada de preocupação: “Estou ouvindo, Zao Tian. Aconteceu alguma coisa?”
Zao Tian respirou fundo antes de responder: “Eu preciso de um favor.”
Daren, ao escutar aquele pedido, imediatamente perguntou: “Que tipo de favor?”
“Estou com um pressentimento.” Com um tom inquieto, Zao Tian falou: “E não é dos bons.”
Houve silêncio do outro lado por um breve instante. Depois, Daren respondeu com um leve tom de sarcasmo contido: “Zao Tian, você tem um pressentimento ruim a cada três dias.”
“Dessa vez é diferente.” Zao Tian riu de canto e rebateu, antes de continuar: “Estou falando de Yang Yin e Yang Fen.”
Ao escutar aqueles nomes, a fala de Daren cessou por alguns segundos. Ele entendeu imediatamente que não era brincadeira: “Você vasculhou as memórias deles.”
“Sim.” Zao Tian respondeu. “E tudo parecia certo. Coerente. Mas tem um ponto... um intervalo curto entre as memórias. As memórias nesse ponto estão fragmentadas demais. Eu sei que o cérebro apaga o que não julga importante, mas... alguma coisa ali está errada. Eu posso sentir isso.”
“Você acha que eles são clones?” Perguntou Daren.
“Não sei.” Zao Tian respondeu de imediato, sendo muito sincero em relação às suas dúvidas, antes de explicar: “Se fossem, eu teria percebido. Isso... isso é outra coisa. É como se tivessem sido montados. Como se alguém tivesse contuído as memórias.”
“Até os Guardiões Imperiais atestam alguns eventos como sendo verdadeiros, mas eu ainda acho que é preciso cautela. E eu não quero alertar ninguém por enquanto.”
Pelo tom de voz de Zao Tian e o teor de suas dúvidas, Daren compreendeu rapidamente o que ele queria.
“Você quer que eu coloque alguém vigiando eles.” Ele disse, antes de completar: “Mas quer que isso seja feito discretamente. Sem que nem os regentes saibam.”
“Exatamente.” Zao Tian confirmou de imediato, antes de expor o que pensava: “Se os dois estão sob vigilância, eles precisam acreditar que estão sendo respeitados e cuidados. Qualquer suspeita pode ativar um protocolo desconhecido. Precisamos de alguém... que saiba se infiltrar.”
“Alguém que eles não percebam.” Daren murmurou.
“Alguém que saiba agir sem ser visto. E que possa contê-los, se for necessário. Mas tem que ser alguém desconhecido até para nós.” Zao Tian completou.
Do outro lado da conexão, Daren ficou em silêncio por alguns instantes, e quando falou novamente, seu tom era mais pesado, mas disposto a ajudar Zao Tian.
“Eu tenho alguém.” Ele disse, antes de avisar: “Mas nunca mostrei esse ativo a ninguém fora do Esquadrão da Noite. Eu queria mantê-lo sob sigilo até a hora que nós realmente precisássemos usá-lo.”
“Quem?” Ao escutar aquilo, Zao Tian franziu o cenho, interessado e questionou, antes de comentar: “Eu acho que o momento de usar alguém assim é agora.”
“Orfeu.” Daren respondeu do outro lado, antes de dar uma breve introdução do seu ativo: “Ele é um cultivador treinado por mim, pessoalmente. Um dos primeiros a integrar o Esquadrão da Noite, mas ele sempre permaneceu na retaguarda. Nunca atuou em missões públicas. Ele é... uma carta oculta nossa.”
Ao escutar que havia alguém que foi treinado pelo próprio Daren para realizar a missão que ele precisava, Zao Tian estreitou os olhos e sorriu de canto, mas teve que perguntar: “E ele pode conter dois Guardiões Imperiais?”
“Se alguém pode, é ele.” Daren respondeu sem qualquer sombra de dúvidas: “Orfeu tem duas afinidades: vida e escuridão. Ele usa as duas em conjunto para criar selos de supressão. Um método raro... e quase impossível de reproduzir.”
Zao Tian deixou o silêncio durar um pouco mais após a última explicação. Seus dedos bateram levemente contra o parapeito de pedra da sacada, enquanto seus olhos continuavam fixos no horizonte da Dinastia Yang. O nome “Orfeu” girava em sua mente como um aviso sussurrado pelos seus instintos.
“Você o treinou pessoalmente...” Ele repetiu, mais para si do que para Daren, antes de voltar a falar com um tom questionador: “Mas por que exatamente o manteve escondido por tanto tempo? Alguém com esse tipo de afinidade não deveria ser usado mais ativamente?”
Daren não respondeu de imediato. Quando o fez, seu tom era direto, mas levemente sombrio: “Porque Orfeu não é como os outros. Ele é silencioso demais. Cauteloso demais. É um anti social quase frio... como se não fizesse parte do mundo que nós vivemos. Mas ao mesmo tempo, ele tem um senso de dever extremo. Ele executa qualquer missão sem vacilar. Quando o conheci, percebi que ele não podia ser usado em missões convencionais. Ele precisava ser mantido como um trunfo. Algo que só apareceria quando nenhuma outra peça servisse.”
Zao Tian assentiu lentamente em aprovação. Aquilo fazia sentido. O Esquadrão da Noite já era formado por especialistas em sigilo, infiltração e neutralização. Se Daren dizia que esse era um ativo fora do padrão até mesmo para eles... então era alguém que ele precisava ter por perto.
“Ele sabe se mover em silêncio. Sabe parecer inofensivo.” Daren continuou: “E mais importante: ele não faz perguntas. Se você quiser que ele se aproxime dos dois como médico, terapeuta, guarda ou serviçal... ele vai se adaptar. A única coisa que ele precisa é de instruções claras.”
“Então seja bastante claro com ele.” Zao Tian disse com convicção: “Ele só precisa observar. Ganhar a confiança dos dois e se aproximar de forma discreta. Ele pode agir como um médico que está ali por preocupação ou como ele desejar, mas ele de forma alguma pode demonstrar que é um agente de contenção. “
“Se tudo correr bem, ele nunca vai precisar agir.” Zao Tian finalizou.
Daren deixou escapar um riso pelo comunicador e não pôde deixar de comentar: “Eu te conheço há muito pouco tempo, mas posso afirmar que com você nada corre bem como esperamos.”
Zao Tian riu de canto e respondeu: “É. Por isso pedi isso agora. Não estou afirmando que algo vai acontecer. Mas eu sou tão azarado quanto sortudo, e se acontecer, se o meu pressentimento estiver certo... o estrago que pode ser causado por dois Guardiões Imperiais não será pequeno. Yang Yin e Yang Fen foram treinados desde a infância, e além da força gigantesca que ambos carregam, eles têm o respeito incondicional de quase todos aqui dentro. Se forem usados como armas, a devastação começará antes mesmo de qualquer preparação. Basta uma ordem, uma palavra, um estopim.”
“Eu concordo.” Daren respondeu: “Eu entrarei em contato com Orfeu agora mesmo.”
“Daren...” Zao Tian chamou, antes que a conversa se encerrasse. O tom de sua voz, desta vez, era mais grave, como se estivesse depositando todo o peso da sua credibilidade em uma última observação: “Orfeu precisa ser discreto. Mas não é só isso. Ele precisa ser cuidadoso. Muito cuidadoso.”
Daren fez uma pausa, absorvendo o significado por trás daquela escolha de palavras: “Você ainda acha que ele vai levantar suspeitas?”
Zao Tian inspirou fundo antes de responder: “Não se trata disso. Estamos infiltrando um agente entre os nossos. Entre aliados. Entre pessoas que sofreram, lutaram e estão tentando se reerguer. Mesmo que seja necessário, e é, isso não será bem visto se descoberto. Nem pelos regentes, nem pelos soldados, e muito menos pelos Guardiões que ainda restam.”
Daren soltou um leve suspiro e comentou: “Você acha que eles vão se sentir traídos.”
“Não tenho dúvida disso.” Zao Tian respondeu, direto: “E eu entendo. Porque, no fundo, isso é uma traição. É uma quebra de confiança. Mas eu não estou disposto a colocar o destino de tantas pessoas em jogo só para preservar aparências.”
Daren não rebateu. Em vez disso, seu tom tornou-se ainda mais compreensivo: “Então quer que ele seja respeitoso.”
“Exatamente.” Zao Tian assentiu: “Orfeu deve agir como se estivesse ali por vocação. Um médico. Um curador. Um servidor do bem maior. Se ele for frio demais, distante demais, ou parecer excessivamente preciso, alguém vai notar. Eles são Guardiões Imperiais, mesmo que algo esteja errado com eles... ainda são espertos o suficiente para perceber quem não pertence ao meio deles.”
“Entendo...” Daren respondeu: “Vou instruí-lo pessoalmente, para que ele seja tão discreto quanto respeitoso.”
Zao Tian encarou o céu por um instante, pensativo, e então respondeu: “Obrigado! Tudo tem que continuar na normalidade aqui. Eu espero mesmo que ele não precise agir.”