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Capítulo UHL 1138 - Por Dentro da Armadura

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Tenham uma boa leitura!]


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A reunião não terminou com uma frase grandiosa.


Terminou com o peso apenas mudando de posição.


Gold foi o primeiro a se desfazer. A presença dele, que parecia ocupada demais em três planos ao mesmo tempo, recuou como uma maré que sabe exatamente até onde pode voltar. Um instante ele estava ali, inteiro; no seguinte, só restava o eco da certeza de que ouvira tudo.


Daren foi quem quebrou o silêncio.


“Eu tenho que reorganizar algumas coisas.” Ele disse, mais para constatar do que para justificar: “Tem gente demais contando comigo agora. Preciso resolver algumas coisas em casa.”


Momoa assentiu.


“E eu tenho um continente para ver.” Ele comentou: “Hill não ficou inteiro só porque eu queria.”


Zao Tian apenas concordou com um gesto curto. Não havia despedidas formais entre eles. Todos sabiam que, dali em diante, cada minuto seria gasto como lâmina, não como enfeite.


Daren saiu primeiro, dissolvendo-se no escuro como alguém que volta para o posto de sempre.


Zao Tian, depois de um último olhar para o salão, seguiu. Ele ainda tinha o Vale, o exército, o plano contra o que quer que a Trindade estivesse fazendo no fundo do universo.


Momoa ficou por alguns instantes a mais.


Quando enfim deixou o salão, não foi direto para nenhuma câmara privada. Ele subiu.


Hill o esperava.


Lá de cima, o continente tinha uma cicatriz bonita e feia ao mesmo tempo. Bonita porque ainda existia. Feia porque a guerra tinha deixado marcas que nenhum cultivo apagaria rápido.


Momoa percorreu o céu como quem passa a mão em uma mesa que conhece cada lasca.


Ele viu cidades que tinham voltado a acender as luzes, mas com quarteirões inteiros faltando.


Viu campos em que fileiras de plantações tinham sido replantadas, interrompidas por manchas de terra mais escura, onde nada tinha voltado a nascer ainda.


Viu muralhas novas, erguidas em torno de lugares que antes nem precisavam de muros.


Mas ele viu, principalmente, os vazios.


Vazios nas formações de patrulha, onde faltava sempre alguém que não voltaria.


Vazios nas casas que agora eram metade do que já foram, segurando famílias que aprenderam a falar mais baixo para não acordar memórias que doíam.


Ele não chorou. Nunca foi de chorar por fora.


Mas cada ausência que via se encaixava num canto interno específico. Hill tinha sobrevivido, assim como o Reino da Escuridão sobreviveu na Grande Guerra, porém a sobrevivência nunca vinha sem preço.


“É um bom saldo.” Ele concluiu, sozinho no céu.


“E ainda é pouco.”


Ele passou o resto do dia, e parte da noite, cruzando o continente. Reaprendendo o cheiro da própria casa. Ouvindo relatos curtos de anciãos, líderes de distrito, cultivadores que seguraram frentes que, antes, seriam todas jogadas sobre ele.


Quando finalmente parou, Momoa sabia duas coisas com clareza: Hill estava de pé, e nunca mais seria o mesmo.


O mundo tinha encolhido para garantir aquilo.


E, agora, era a vez de outro homem segurar o resto.


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No Vale da Esperança, o mundo era menor.


Não em poder, mas em escala de horizonte.


Ali, o céu parecia mais perto justamente porque era o lugar em que muita gente, depois de atravessar o universo em guerra, tinha decidido fixar o pé. O Vale tinha sido esculpido para ser um refúgio, e, depois de tudo o que Zao Tian fizera, tinha chegado perigosamente perto de se tornar o lugar mais seguro do mundo.


Perigosamente, porque segurança demais sempre deixava alguém tentado a esquecer que existiam monstros lá fora.


Zao Tian sabia disso.


Era por isso que, mesmo depois de reuniões que mudavam a direção da criação, ele ainda fazia questão de percorrer o Vale como um guarda comum.


Ele caminhava pelos limites visíveis e invisíveis, checando o que ninguém mais pensaria em checar.


Passou por formações espirituais incrustadas em rochas, testando a resposta com um toque de energia leve, só para ouvir o “eco” correto.


Revisou a densidade das barreiras que se cruzavam no céu do Vale, procurando pontos de fadiga que só alguém obcecado perceberia.


Observou discretamente alguns postos de vigia, notando quem estava de guarda, quem se deixava distrair por um minuto a mais, quem carregava nos olhos o tipo certo de atenção.


“Já tem muralhas demais.” Ele pensou, por um momento.


“Mas não para o que vem.”


Enquanto fazia aquilo, ele não procurava perfeição por mania. Fazia isso porque conhecia a imaginação dos inimigos. A Trindade tinha provado, várias vezes, que qualquer brecha era um convite.


Só depois de muito andar é que ele deixou o corpo seguir um caminho mais leve, descendo para uma das áreas abertas do Vale.


Foi então que ele ouviu algo que não escutava há muito tempo: risadas misturadas com gritos de esforço infantil.


Era um campo de treinamento.


Zao Tian se aproximou devagar, e Ye Zuo estava lá.


O velho élder não tinha o mesmo vigor de antes, mas a postura continuava a mesma. Ele andava entre fileiras de crianças, corrigindo mãos, pés e respirações. Do lado, alguns adolescentes de quinze anos ajudavam a manter a ordem, repetindo instruções básicas.


“Postura, postura!” Ye Zuo chamava atenção, batendo de leve na perna de um garoto.


“Se a base treme, tudo treme. Não adianta querer soltar um golpe bonito com o pé frouxo.”


As crianças obedeciam com uma seriedade quase cômica. Algumas ainda tropeçavam na própria pressa, outras imitavam com perfeição o que viam os mais velhos fazerem.


Zao Tian diminuiu o passo quando chegou a alguns metros.


Ele não tinha intenção de atrapalhar. Só parou, à distância, observando em silêncio. E, naquele momento, ele inevitavelmente, comparou.


Na idade daqueles pequenos, o campo de treino dele era outro. O primeiro “mestre” formal tinha sido o mesmo Ye Zuo, numa escola marcial que agora parecia pertencer a outra vida. Só que a atmosfera era completamente diferente.


Naquele tempo, a sala raramente ficava silenciosa por causa do treino. O barulho vinha de provocações, disputas, brigas de ego.


Gu Ren, Ming Xue e Ming Xiao tinham sido as únicas exceções. O resto… era puro conflito.


“Lin Bei.” O nome veio sozinho em sua mente.


O primeiro que tinha decidido persegui-lo sem motivo claro. O primeiro a olhar para ele e ver um alvo, não colega. O primeiro a provar, na prática, que o mundo não ia perdoar ninguém por existir fora do padrão.


“Meu primeiro adversário.” Zao Tian pensou.


“Depois dele, nunca mais faltou.”


Enquanto lembrava, ele observava as crianças de agora, trocando de par para executar exercícios simples, sem nenhuma fagulha de hostilidade verdadeira.


Havia competição, claro. Alguns queriam fazer melhor do que o outro, queriam acertar a postura, receber elogios de Ye Zuo. Mas ninguém ali queria ver o outro quebrado. Não havia aquele prazer doentio em humilhar.


Era um contraste grande demais.


“Será que eu seria quem sou hoje se tivesse nascido nesse tempo…?” Ele pensou, não pela primeira vez.


A resposta, naquele ponto, parecia óbvia.


“Não.”


E o fio seguinte, porém, vinha com mais nó.


“Mas será que eu seria mais feliz…?”


Ele não tinha resposta pronta. Não dava para saber o que aconteceria com sua vida se ele não tivesse passado por tudo o que passou.


Enquanto cismava com isso, Zao Tian notou que o som do campo tinha mudado. Os movimentos foram parando aos poucos.


Ye Zuo, lá na frente, tinha percebido a presença dele. O élder endireitou a postura, o que já dizia muito, e seus olhos viajaram pelo campo até encontrarem Zao Tian.


Um sorriso discreto apareceu no velho homem.


“Parem um pouco.” Ye Zuo disse, para o grupo: “Continuem alongando. Não desfaçam as formações.”


Enquanto as crianças se ajeitavam, Ye Zuo caminhou até Zao Tian, sem fazer alarde demais, mas sem esconder o orgulho.


“Vai só ficar olhando?” Ele perguntou, num tom que misturava respeito e intimidade ao mesmo tempo: “Ou vai trabalhar também?”


Zao Tian sorriu de canto.


“Do jeito que está, não preciso mexer em nada.” Ele respondeu: “Você já está fazendo mais do que deveria.”


Ye Zuo balançou a cabeça.


“Eu fiz a minha parte.” Ele corrigiu: “Agora, quem inspira são outros olhos.”


Depois de dizer aquilo, Ye Zuo virou-se para o campo e ergueu a voz.


“Ei!” Ele chamou.


Todos os pescoços viraram ao mesmo tempo.


As crianças sabiam quem ele era desde o primeiro segundo. Só fingiam que não, por reverência.


“Hoje vocês vão receber instrução de alguém que não precisa de apresentação.” Ye Zuo anunciou: “Mas ele é teimoso, então, eu vou apresentar mesmo assim. Este é Zao Tian.”


Uma onda de murmúrios percorreu o campo. Não era uma gritaria histérica; era um espanto que estava tentando ser contido.


Naquele momento, alguns olhos brilharam de um jeito que Zao Tian só tinha visto em batalha, quando soldados exaustos viam um reforço impossível chegar.


Zao Tian sentiu o peso daqueles olhares, mas ele tentou aliviar, ainda assim.


“Eu sou…” Ele começou.


“Zao Tian!” Metade das crianças respondeu em coro, cortando sua frase.


Uma delas, mais afoita, acrescentou:


“Todo mundo sabe que é você, mestre!”


Ele travou por um segundo breve, mais pela palavra do que pelo reconhecimento. “Mestre” ainda era algo que ele teimava em colocar nos outros, não em si mesmo.


Ye Zuo apenas sorriu, satisfeito.


“Viu?” Ele comentou, baixinho: “Eles já te dão mais títulos do que você aceita.”


O clima tinha mudado.


A reflexão silenciosa dentro da cabeça de Zao Tian cedeu espaço para algo mais leve, quase estranho para ele: a curiosidade genuína de olhos que nunca o tinham visto sangrando, apenas vencendo.


Ele deu alguns passos à frente, entrando de vez no campo de treinamento.


“Então vamos fazer assim.” Ele disse: “Se vocês já sabem meu nome, isso facilita. A parte difícil é ver se sabem o que fazer com o próprio.”


Algumas risadas nervosas escaparam.


“Quem aqui acha que força é o golpe que sai da mão?” Ele perguntou.


Várias mãos se levantaram, principalmente das crianças menores.


Zao Tian apontou para um menino magro, na ponta da formação.


“Vem cá.”


O garoto engoliu seco, mas foi.


“Dá o golpe mais forte que você sabe.” Zao Tian pediu: “Do jeito que você treinou.”


O menino assumiu uma postura que, claramente, tinha sido copiada de alguém mais velho. Ele firmou o pé… mais ou menos; Girou o quadril… mais ou menos; E socou o ar com toda a força do pequeno corpo.


O impacto foi fraco, espalhado.


Zao Tian, observando, assentiu.


“É isso que a maioria de vocês acha que é força.” Ele disse: “Agora vamos começar o trabalho de verdade.”


Ele caminhou até ficar atrás do garoto.


“Afunda o pé.” Ele orientou: “Não é só encostar no chão. É como se você quisesse furar a terra com o calcanhar. Sinta ela te devolvendo o peso.”


O menino tentou. E ajustou a postura de acordo com o que Zao Tian instruiu.


“Agora, o joelho não fica travado, fica flexível. O quadril não gira sozinho, gira junto com a coluna. O ombro não adianta fugir lá para frente se a base está frouxa. Força é o caminho, não a chegada.”


Ele reposicionou, com cuidado, cada ponto.


“Respira.” Ele mandou.


“Enche o ar aqui.” Zao Tian tocou o centro do peito do garoto.


“E solta ele junto com o movimento, não depois.”


Quando o menino golpeou de novo, o som que o punho fez atravessando o ar foi outro.


Os outros pequenos instantaneamente arregalaram os olhos.


“Vocês viram?” Zao Tian perguntou.


“Foi mais forte!” Alguém gritou.


“Não.” Ele corrigiu, sem dureza: “Foi menos desperdiçado. A força já estava nele. Eu só ajudei a sair pelo lugar certo.”


Depois de dizer aquilo, ele passou as instruções para o grupo.


“Todo mundo, postura.” Ele ordenou.


As crianças imitaram, algumas tropeçando nas próprias pernas.


“Pé enraizado, joelho solto, quadril e coluna casados, com o ombro obedecendo. A respiração acompanha. Vocês não vão lembrar de tudo hoje, mas o corpo de vocês vai lembrar, se repetirem certo e exaustivamente.”


Por alguns minutos, o campo inteiro virou um coro de movimentos básicos.


Zao Tian corrigia aqui, ajustava ali, às vezes segurando um punho, às vezes empurrando um ombro para alinhar, mas sempre falando com um tom que misturava firmeza e cuidado.


Em dado momento, uma menina errou o tempo, quase caindo de bunda no chão. Ele a segurou pelo braço, rindo leve.


“Tá tudo bem.” Ele disse: “Cair faz parte. O problema é se acostumar a ficar no chão.”


Até Ye Zuo sorriu por trás da mão.


Depois de um tempo, Zao Tian mudou o foco.


“Agora, uma coisa sobre luta.” Ele falou: “Vocês estão em um lugar seguro. Aqui dentro, ninguém precisa ficar com medo do colega. Isso é bom. Aproveitem. Mas não se enganem achando que o mundo é assim.”


Algumas expressões ficaram mais sérias.


“Quando vocês treinarem juntos, lembrem de duas coisas.” Ele continuou: “Primeiro, não sejam o tipo de pessoa que torce para o outro errar. Segundo, não sejam o tipo de pessoa que se acostuma a não ser testada. Quem só treina com gente que pega leve nunca descobre o que aguenta.”


Ele resumiu, apontando para o peito de cada um, com o olhar:


“Vocês vão ser o ambiente um do outro. Ou um chão que ajuda a crescer, ou um buraco que puxa para baixo. Escolham direito.”


As crianças talvez não tivessem entendido tudo, mas a impressão ficou.


Ao final, Ye Zuo retomou o comando dos menores.


“Por hoje é isso.” Ele disse: “Repetirão o que ele ensinou duzentas vezes antes de dormir, certo?”


“Certo!” O coro veio, meio cansado, meio empolgado.


Antes de serem liberados, uma das crianças levantou a mão.


“Mestre Zao Tian…” Ela chamou, tímida: “Você… vai voltar?”


Ele pensou um segundo e sorriu.


“Se depender de mim, sim.” Zao Tian respondeu.


“Então a gente vai ficar forte até lá!” Outro garoto gritou, apertando os punhos.


A onda de empolgação foi suficiente para fazer até o ar tremer.


Quando Ye Zuo deu a ordem de saída, as crianças foram indo em grupos, falando alto, rindo e empurrando-se amistosamente. Algumas olhavam para trás, para conferir se ele ainda estava ali. Se tudo tinha sido real


“Obrigado, mestre!” Um gritou.


“Obrigado!” Outro repetiu, mais sério.


Zao Tian recebeu cada palavra com um nó estranho no peito. Ele já tinha recebido reverências de exércitos inteiros, agradecimentos em lágrimas de gente salva no último instante, promessas grandiosas de líderes de mundos… mas ser chamado de mestre por um bando de pirralhos em formação tinha um gosto diferente.


Quando o campo esvaziou, restaram apenas os adolescentes de quinze anos.


Diferente das crianças, eles não correram. Ficaram parados, meio sem saber se aproximavam-se ou se mantinham uma distância respeitosa.


Então, um deles, de olhar direto demais para a idade, finalmente tomou coragem.


“Posso perguntar uma coisa…?” Ele disse.


“Pode.” Zao Tian respondeu.


“É tão bom assim…” O garoto hesitou, escolhendo bem as palavras: “Ser quem o senhor é?”


Ele segurou o olhar, sem fugir do que queria dizer, antes de completar seu raciocínio: “Porque… às vezes parece que o senhor está sempre triste.”


O silêncio que seguiu aquele questionamento inocente não foi constrangedor. Foi denso.


Zao Tian olhou para o chão de terra batida e, em vez de ficar de pé, decidiu se abaixar.


Ele sentou ali mesmo, cruzando as pernas, como qualquer outro.


“Sentem.” Ele pediu.


Os cinco adolescentes se olharam, surpresos, mas obedeceram. Eles sentaram em volta dele, formando um círculo.


“Agora que as crianças saíram…” Zao Tian disse, com um meio sorriso cansado: “Eu posso ser sincero sem quebrar a magia delas. Com vocês, dá para falar de outro jeito.”


Eles assentiram, sérios. Quinze anos era exatamente a idade em que ele tinha sido empurrado para dentro do mundo marcial. A idade em que a inocência não cabia mais inteira, mas ainda não tinha sido totalmente esmagada.


“Primeiro…” Zao Tian começou: “Não é ruim ser quem eu sou.”


Ele apontou para o Vale, ao redor.


“Se eu não fosse, esse lugar não existiria desse jeito. Talvez nem existisse.” Ele continuou: “Eu vi continentes caírem, vi famílias serem esmagadas, vi monstros que vocês nem conseguem imaginar. E, ainda assim, estou sentado aqui. Isso é um privilégio, para mim.”


Ele respirou.


“Mas também não é tão simples quanto parece quando vocês me veem de longe.”


Ele olhou para o garoto que fizera a pergunta.


“Você disse que acha que eu estou sempre triste.” Zao Tian repetiu: “Às vezes, eu estou mesmo. Outras, eu só estou cansado. Outras, eu só estou pensando rápido demais para lembrar de sorrir.”


Ele deu de ombros.


“Vamos lá.” Zao Tian continuou: “Quando eu tinha a idade de vocês, o meu mundo era uma escola marcial. Eu achava que o fim do universo era aquela sala. Os meus inimigos cabiam ali.”


Um dos adolescentes, meio nervoso, perguntou: “Tipo… colegas que pegam no pé?”


“Tipo isso.” Zao Tian confirmou: “Lin Bei foi o primeiro. Eu não fiz nada para ele. Só existia. E ele decidiu que isso era suficiente para me odiar. A partir dali, eu entendi que o mundo não precisava de motivos justos para te dar um inimigo.”


Alguns sorrisos amarelos surgiram. Eles sabiam do que ele estava falando, mas em uma escala menor.


“No começo, eram só brigas de escola.” Ele continuou: “Socos, chutes, provocações. Eu me achava o homem mais perseguido do mundo dentro daquela sala pequena. Só que aí… a sala foi crescendo.”


Ele ergueu a mão, desenhando degraus invisíveis no ar.


“Depois de um tempo, não era mais um colega. Era uma família tradicional inteira.” Ele disse: “Gente com sobrenomes pesados, com influência, com séculos de orgulho. Eles decidiram que eu era um problema. E eu tive que lidar.”


Um dos adolescentes engoliu seco.


“Você venceu?” Ele perguntou, quase sussurrando.


“Eu sobrevivi.” Zao Tian corrigiu: “Alguns deles não. Outros, mudaram. Outros, até se tornaram aliados. Mas o importante é isso: quando esse problema foi resolvido… outro maior apareceu.”


Ele foi subindo na escala.


“De uma família, virei alvo de duas.” Continuou: “De duas, virei alvo de um sistema. De um sistema, virei inimigo de forças que nem sabiam o meu nome, só sabiam que eu atrapalhava o jeito deles de mandar.”


Os olhos dos adolescentes estavam presos nele.


“Os lugares por onde eu andava começaram a mudar também.” Ele disse: “Saí da escola, fui para cidades. Das cidades, fui para países. Dos países, para um continente inteiro. Do continente, para o mundo. E agora… vocês já sabem. A conversa é com deuses, e até com coisas que vivem fora do tempo.”


Ele deixou um silêncio curto cair, para que a escada inteira se montasse na cabeça deles.


“Os inimigos crescem junto com você.” Zao Tian disse, por fim: “Eles não somem. Só mudam de cara e de escala. No começo, eles querem te derrubar da cadeira da sala. Depois, querem apagar a sua cidade. Depois, querem que você seja o exemplo de como o mundo não deve ser. E, um dia, eles querem que você deixe de existir para que ninguém sequer lembre que existe uma opção.”


Ele inclinou um pouco o rosto.


“Ser quem eu sou significa carregar isso o tempo todo.” Zao Tian acrescentou: “Significa quase nunca poder descansar de verdade. Se eu relaxo demais, alguém morre no lugar errado.”


Um dos jovens, mais calado desde o início, abriu a boca pela primeira vez.


“Então… vale a pena?” Ele perguntou: “Com tudo isso… vale?”


Zao Tian não apressou a resposta.


“Depende do que você chama de ‘valer a pena’.” Ele disse: “Se você pensa em paz, em ser deixado em paz, em viver sua vida sem que o mundo encoste muito em você… então não, não vale. Esse caminho tira isso de você.”


Depois de dizer aquilo, ele olhou para o horizonte do Vale.


“Mas se você pensa em significado… aí é outra conversa.” Ele continuou: “Cada passo que eu dei me trouxe até aqui. Esse lugar existe porque muita gente escolheu não se acomodar. Eu também. Quando eu ando por entre essas casas, quando eu vejo crianças treinando sem medo, quando eu vejo famílias que não precisam dormir com um olho aberto… eu sei que tem uma parte minha ali.”


Ele voltou o olhar para eles.


“Crescer…” Zao Tian disse: “Não é só ficar mais forte. É entender que o mundo vai te cobrar por cada centímetro que você sobe. Vai cobrar com responsabilidade. Com escolhas que ninguém vai poder fazer no seu lugar. Com noites em que você vai querer só ser mais um… e não vai ser.”


Ele respirou fundo, procurando palavras que não fossem nem românticas demais, nem cínicas demais.


“Vocês querem força?” Ele perguntou: “Então entendam isso desde já. Força não é só o soco que dobra uma pedra. É a capacidade de continuar quando tudo em você quer parar. É aguentar não ser entendido por quase ninguém. É ver gente indo embora no meio do caminho e, mesmo assim, não largar aquilo que você sabe que precisa fazer.”


Os adolescentes escutavam Zao Tian como se cada frase fosse um peso que precisasse ser segurado com as duas mãos.


“Eu não vou dizer para vocês não crescerem.” Zao Tian afirmou: “Seria hipocrisia. O mundo precisa de gente que sobe. Mas eu quero que vocês saibam que, quanto mais alto forem, menos ‘paz’ comum vai sobrar. Em compensação… talvez sobre mais sentido.”


Um dos garotos, o primeiro que perguntara, franziu o cenho.


“Mas… o senhor está triste agora?” Ele insistiu.


Zao Tian pensou.


“Eu estou cansado.” Ele respondeu, honesto: “Estou preocupado. Estou com medo de algumas coisas. Mas também estou… satisfeito.”


Eles pareciam não ter entendido a mistura.


“É possível estar cansado e satisfeito ao mesmo tempo.” Ele explicou: “É como depois de um treino puxado em que você sabe que deu tudo. O corpo dói, mas a cabeça sabe que aquilo te empurrou para a frente. Minha vida inteira tem sido isso. Dói, mas serve.”


Ele sorriu, um sorriso pequeno, mas real.


“Se algum de vocês decidir seguir um caminho parecido com o meu…” Zao Tian disse: “Eu só peço que lembrem de duas coisas. Primeiro: não se acomodem nunca. Acomodar é morrer em pé. Segundo: não esperem ser deixados em paz. Quem pega uma responsabilidade grande não pode devolvê-la. Ou leva até o fim… ou derruba todo mundo junto.”


Os adolescentes ficaram em silêncio.


Aquele não era o silêncio vazio de quem não entendeu nada. Era o silêncio pesado de quem, pela primeira vez, via por dentro a armadura que sempre admirou de fora.


Depois de um tempo, Zao Tian levantou.


“É isso.” Ele concluiu: “Eu não sei se respondi a sua pergunta. Mas é o mais honesto e justo que eu consigo ser com vocês.”


Os jovens também começaram a se erguer, meio sem graça, meio sem saber se deviam dizer algo.


Contudo, o mesmo garoto que tinha iniciado a conversa respirou fundo.


“Respondeu, sim.” Ele disse.


E, então, ele completou, com uma seriedade que não combinava com a pouca idade: “Obrigado, Zao Tian!”


Aquele não foi um obrigado qualquer. Não teve adjetivo, não teve enfeite.


Foi só uma palavra, mas ela veio de um lugar tão fundo que parecia estar carregada com todo o peso de tudo o que ele tinha ouvido, sentido e entendido.


E Zao Tian sentiu aquilo bater diferente.


Ele já tinha recebido agradecimentos de gente que teve a vida salva no último segundo, de líderes ajoelhados, de exércitos inteiros gritando seu nome. Nenhum deles, porém, tinha exatamente aquele timbre.


Talvez porque, ali, pela primeira vez em muito tempo, ele não tinha sido um símbolo. Tinha sido só um homem dizendo a verdade para um grupo de jovens sentados na terra.


Em resposta, ele assentiu, uma única vez.


“De nada.” Zao Tian respondeu, baixo, mas com um orgulho e satisfação que não cabia em lugar nenhum.


Quando os adolescentes se afastaram, voltando para suas rotinas, o Vale da Esperança continuou exatamente o mesmo. Mas, por alguns instantes, o peso nos ombros de Zao Tian pareceu se reorganizar.


Ele não ficou menor. Só se encaixou melhor.


Aquele dia foi marcante para Zao Tian. Alguém que viveu tantas coisas intensas e impossíveis, estava guardando em um lugar especial da sua memória uma simples conversa com adolescentes e um dia tão casual de orientações às crianças do Vale da Esperança.




O ÚLTIMO HERDEIRO DA LUZ -UHL | NOVEL

© 2020 por Rafael Batista. Orgulhosamente criado com Wix.com

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